Etanol e Biocombustíveis: Problemas Sociais, Problemas Ambientais e Eficiência Energética
A globalização neoliberal fomenta, entre outras fobias, a do crescimento económico contínuo. Mas, hoje em dia, o que acontece na generalidade dos países é que o crescimento económico corresponde também ao crescimento da pobreza. “Quantas vezes ouvimos políticos a dizer que precisamos de crescimento para acabar com a pobreza?”
Luís Rocha* – 31.03.07
O Paradigma do Crescimento
O professor de Física Albert A. Bartlett da Universidade de Colorado em Boulder, conhecido divulgador do Pico de Hubbert, costuma repetir onde quer que vá uma famosa frase: “O maior handicap da espécie humana é a nossa incapacidade de compreender a função exponencial”. Ao que costuma acrescentar, explicando-se, que o principal Paradigma da espécie humana, particularmente desde a Revolução Industrial com a ascensão dos combustíveis fósseis, é o Paradigma do Crescimento. Fala da obsessão pelo crescimento, pelo crescimento eterno, pelo crescimento económico e pelo crescimento populacional. O professor Bartlett aponta correctamente que nós humanos convencemo-nos que não podemos ser felizes e alcançar o bem-estar social sem crescimento. Por exemplo, quantas vezes já ouvimos políticos a dizer que precisamos de crescimento para acabar com a pobreza? Mas o que muitas vezes acontece é que mais crescimento económico leva a mais desigualdade e pobreza.
E porque é isto importante para uma discussão do Etanol e Biocombustíveis? Pela seguinte razão: se procurarmos soluções dentro do Paradigma actual de consumo crescente de combustível (seja fóssil, seja verde), só poderemos esperar mais crises ambientais e sociais, cada vez piores no futuro. Eu acho que se o Pico do Petróleo tem alguma vantagem, enquanto fenómeno que irá fazer a humanidade passar por tempos duros e difíceis, essa vantagem é que compreendamos que o Paradigma do Crescimento está errado. Não podemos continuar a fazer planos económicos para níveis de consumo energético crescentes ignorando que se esgotarão os principais combustíveis fósseis (petróleo e gás) durante a primeira metade deste século (até num relatório do Exército dos EUA isto é admitido).
Para além desta abordagem mais filosófica que eu estou a dar ao problema, poderia acrescentar que já vários especialistas e estudiosos do Pico de Hubbert comprovaram exaustivamente que não há nenhum substituto do petróleo, ou combinação de substitutos, que nos permita continuar a consumir mais e mais energia a cada ano que passa, seja combustível para transportes, seja electricidade, seja até insumos agrícolas.
Algumas características gerais do Etanol e Biocombustíveis
Passemos então à discussão do etanol e biocombustíveis. As principais regiões produtoras de etanol e biocombustíveis no mundo são os Estados Unidos produzindo etanol sobretudo a partir do milho, a Europa a partir de colza, linho e beterraba, o Brasil produzindo etanol através da cana-de-açúcar e o Sudoeste Asiático (particularmente a Indonésia e a Malásia) produzindo biodiesel a partir de óleo de palma (produto das chamadas palmeiras de óleo).
Todos estes biocombustíveis estão intimamente ligados à agricultura industrial que é baseada no consumo de petróleo e gás natural para os insumos de pesticidas, fertilizantes e mecanização. Embora varie a eficiência energética entre os diferentes biocombustíveis calculada no EROEI de cada tipo. EROEI significa (em sigla inglesa) a quantidade de energia gasta por cada unidade de energia produzida.
O “Milagre do Etanol Brasileiro”
Quando se fala no “milagre do etanol brasileiro” gera-se um pouco de confusão, porque na batalha dos números que surge no debate, as pessoas às vezes ficam com a sensação que o etanol já satisfaz metade do consumo de combustível brasileiro ou coisa parecida. Ora para desfazer este equívoco basta citar o excelente especialista e hábil crítico do etanol, Robert Rapier:
«De acordo com o documento recentemente publicado pela BP, “Revisão de Estatísticas da Energia Mundial de 2006”, o Brasil consumiu 664 milhões de barris de petróleo em 2005. Em 2005, o Brasil produziu 4,8 biliões de galões de etanol, ou 114 milhões de barris. Contudo, um barril de etanol contém aproximadamente 3,5 milhões de BTUs e um barril de petróleo contém aproximadamente 6 milhões de BTUs. Portanto, 114 milhões de barris de etanol apenas substituem 67 milhões de barris de petróleo, à volta de 10% do consumo de petróleo do Brasil. Por outras palavras, o milagre da independência energética do Brasil foi 10% etanol e 90% produção de crude doméstica» (Robert Rapier, 2006).[1]
E depois Rapier refere os números oficiais do governo brasileiro quanto ao seu consumo por tipos de combustível que tendo em conta a diferença de BTUs que ele referiu, parecem coincidir:
«De acordo com uma apresentação em Março de 2006 do Ministro Brasileiro de Energia e Minas, a actual repartição do consumo de combustíveis para veículos no Brasil (por volume) é 53,9% de diesel, 26,2% de gasolina, 17% de etanol e 2,9% de gás natural» (Robert Rapier, 2006). [1]
Apesar disso, é verdade que o EROEI do etanol de cana é alto comparado com os outros biocombustíveis, é verdade que o Brasil tem condições óptimas para produzir a cana-de-açúcar que o origina, por causa do seu clima tropical com abundância de terra muito fértil. Segundo um relatório chamado “Sustentabilidade do bioetanol brasileiro” conduzido pelo Instituto Copernicus da Universidade holandesa de Utrecht e pela Universidade de Campinas no Brasil, a análise de vários estudos levou a concluir que o etanol brasileiro tem um EROEI entre 8,3 e 10,2 muito superior ao milho norte-americano (entre 1 e 0) e restantes biocombustíveis com EROEIs entre 2 (da soja) e EROEIs negativos. Contudo há que lembrar que o Brasil utiliza 7 vezes menos energia per capita que os Estados Unidos e também várias vezes menos energia per capita que a Europa.
O pesadelo dos camponeses brasileiros
Agora convém também referir que o impacto social da produção de etanol já causa bastante polémica e tensões no Brasil. Historicamente na América Latina as plantações da cana-de-açúcar estiveram ligadas à terrível e desumana escravatura. O que causa uma certa perplexidade é que no Brasil de hoje essa ligação continua a existir. Eu diria que é um dos efeitos nocivos do Paradigma do Crescimento e da Agricultura Industrial.
«Em 1993, a mecanização da produção dos canaviais não atingia 0,5% do total da produção. Em 2003, aproximadamente 35% da produção brasileira já era mecanizada. A intensa mecanização dos canaviais tem gerado algum atrito político e social. Tem havido grande perda de empregos no sector, que usa mão-de-obra intensiva e pouco qualificada: os chamados bóias-frias. Essa ainda é a única ocupação disponível para populações inteiras no interior do Brasil» (Wikipédia). [2]
Convém esclarecer quem são os bóias-frias:
«Geralmente, os bóias-frias são conduzidos em levas em camiões, em precárias condições de segurança, de casa até as plantações onde devem trabalhar. Os locais variam de acordo com as épocas do ano e as épocas de colheita. O nome advém do facto de estes trabalhadores levarem consigo as suas próprias refeições (na gíria, bóia) em recipientes sem isolamento térmico desde que saem de casa, de manhã cedo, o que faz com que elas já estejam frias na hora do almoço. Em anos recentes, houve diversas denúncias e casos de bóias-frias encontrados sob exploração de trabalho escravo ou semi-escravo, o que faz desta classe um tema constante na luta por direitos humanos» (Wikipédia). [2]
Dado o alastrar destes problemas sociais, não surpreende a rejeição do etanol por parte do Movimento dos Sem Terra (MST), a organização social que agrupa os excluídos do campo e defende um modelo de agricultura orgânica virada para o consumo interno. O conflito social no campo entre agricultores sem terra e grandes fazendeiros é agravado pela corrida ao etanol, como ficou claro na imprensa brasileira na última viagem de Bush ao Brasil.
«Os protestos no Brasil terão como eixo a oposição à “agricultura energética”, que busca aumentar a produção de biocombustíveis a partir de matérias-primas como cana-de-açúcar e milho, o que, para alguns, piorará as condições trabalhistas no país. A agenda de Bush, que se reunirá em São Paulo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, inclui a discussão de acordos de cooperação e possíveis investimentos conjuntos para produzir etanol» (Vermelho, 2007). [3]
O desastre ambiental do Biodiesel asiático
Da Malásia e da Indonésia chegam notícias de um desenvolvimento acelerado da indústria do biodiesel. Eu faço duas citações da Wikipédia que mostram cabalmente as duas faces deste desenvolvimento. E à medida que cresce a produção de biodiesel…
«O governo malaio está a redireccionar o uso de óleo de palma para a produção de biodiesel para poder assim cobrir a imensa procura dos países europeus; ele tem encorajado a construção de fábricas de biodiesel. Isto é devido aos altos preços dos combustíveis e o aumento da procura por energias alternativas no mundo ocidental. As fábricas vão começar a operar em meados do próximo ano [2007] e vão produzir 100.000 toneladas de biodiesel anualmente. Uma forte procura de biodiesel por parte da Europa assim como da Colômbia, Índia, Coreia do Sul e Turquia tem incentivado o crescimento da indústria, enquanto cada vez mais países procuram reduzir a sua dependência nos combustíveis fósseis. A Malásia já começou os preparativos para mudar de diesel para biocombustíveis em 2008, incluindo a elaboração de legislação que fará a mudança ter um carácter obrigatório. A partir de 2007, todo o diesel vendido na Malásia tem de conter 5% de óleo de palma. Sendo este país o maior produtor de óleo de palma do mundo, ele pretende obter vantagem na corrida por encontrar combustíveis limpos» (Wikipédia, Novembro de 2006). [4]
Crescem os problemas ambientais…
«Com o crescente ênfase dado aos biocombustíveis como alternativa sustentável aos combustíveis fósseis é importante reconhecer que os benefícios são parcialmente negados quando existe desflorestação para criar mais espaço para biocombustíveis como o óleo de palma. ONGs estão agora a alertar a arena internacional para o facto de apesar de milhões de hectares de terra continuarem sem ser cultivados na Indonésia, ainda assim se procede à desflorestação de florestas tropicais de madeiras fortes para plantar palmeiras de óleo. Adicionalmente, enquanto a remanescente floresta desprotegida das terras baixas se esgota, os investidores procuram a turfa dos pântanos para conversão em terra cultivável, o que causa a drenagem da turfa, o que não só liberta o carbono da superfície cobrindo as árvores, mas também inicia um processo de oxidação do carbono nas reservas de turfa – que podem ter entre 5.000 e 10.000 anos de carbono acumulado e preso debaixo do solo. A turfa drenada é também de alto risco para fogos florestais e existe um histórico de evidências que o fogo está a ser usado para queimar vegetação para o posterior desenvolvimento do óleo de palma na Indonésia. Em 23 de Novembro de 2006 a Austrália abriu a sua primeira fábrica de transformação de óleo de palma em biodiesel em Darwin. Quando esta estiver completamente operacional em 2007, ela deve processar 140 milhões de litros de biodiesel anualmente» (Wikipédia, Novembro de 2006). [4]
Sem comentários.
Impactos sobre o ritmo de desflorestação
A desflorestação também tem acelerado nos países em desenvolvimento que produzem a bioenergia. Num importante sítio web ecologista (FAO, 2005) [5] existem informações sobre a taxa de desflorestação desde 1990 a 2005. Eu consultei as informações sobre os principais produtores de biodiesel e etanol que também são alguns dos mais importantes possuidores de florestas tropicais, são eles: Brasil, Malásia e Indonésia. Em todos os casos se verifica o aumento da taxa de desflorestação do período 1990 a 2000 ao período de 2000 a 2005. Esse aumento foi mais ligeiro no Brasil de 0,52% a 0,63% (porção de floresta destruída anualmente), quase duplicou na Malásia de 0,35% a 0,65% e aumentou também ligeiramente na Indonésia de 1,61% para 1,91%. Daqui se conclui que a Indonésia tem um nível de desflorestação verdadeiramente selvagem (perdeu 1/4 da floresta de 1990 a 2005), a Malásia que era o menos mau em protecção de florestas na década de noventa está aumentar a desflorestação caoticamente e o Brasil embora não tenha aumentado muito o ritmo da desflorestação, o que é facto é que aumentou, e tem um ritmo bem alto. Todos os casos nos devem preocupar, mais ainda porque estas estatísticas só mostram números até 2005 e não reflectem a enorme pressão sobre as florestas tropicais que está implícita nos objectivos proclamados tanto pelos Estados Unidos como pela UE de tornar obrigatório o uso do etanol e do biodiesel numa percentagem elevada do consumo ocidental. Se juntarmos a isto a frenética procura asiática de combustível da China, Japão e Coreia do Sul temos um quadro de autêntica corrida ao “ouro verde”.
Ecologistas alertam para a desflorestação e outros impactos
Em 12 de Agosto de 2005 a World Wildlife Fund (Fundo de Protecção da Vida Selvagem) alertou num comunicado que existem planos do governo indonésio, com o financiamento do poderoso governo chinês, para construir a maior plantação mundial de óleo de palma na fronteira montanhosa da Indonésia com a Malásia, o que poderá ter um impacto devastador nas florestas, vida selvagem e povos indígenas do Bornéo (World Wildlife Fund, 2005) [6]. Esta mesma área é chamada pelos ecologistas de “coração do Bornéo” pela sua importância vital na manutenção de ecossistemas e várias espécies ameaçadas (ex: o Orangotango do Bornéo).
Em Outubro de 2005, o Dr. Gleen Barry, activista por trás de Forests.org e ClimateArk, enviou um Alerta para a Acção apelando à Comissão Europeia para rejeitar o seu plano de uso de biocombustíveis que contribui para a destruição de florestas tropicais, especialmente o óleo de palma e óleo de soja. A sua mensagem pedia aos leitores para enviar e-mails de pressão para o Director Geral da energia e Transportes da Comissão Europeia. O Dr. Gleen é apenas um entre muitos activistas ecologistas que denunciam crescentemente os planos de produção de biocombustíveis.
«Está claro que a Europa e o mundo deviam investir mais fortemente na energia do vento e do sol e não em criar, estimular e subsidiar despreocupadamente novos mercados internacionais de exportação de óleo de palma e de soja» (Glenn Barry, 2005). [7]
Sobre a zona mais crucial para a biodiversidade, a Floresta Tropical brasileira (30% da biodiversidade mundial), a Amazónia, vários artigos de opinião alertam para as pressões crescentes principalmente de conversão da floresta em terra agrícola e pastagens e também das empresas madeireiras. Em simultâneo a estas pressões agrava-se o conflito social no campo, com a crescente mecanização agrícola aumentando os excluídos do campo, os sem terra.
«(…)Os cientistas dizem que a floresta Amazónica joga um papel crucial no ambiente global, provendo uma porção do oxigénio mundial e prendendo uma quantidade massiva de carbono. Cada vez que a floresta é cortada, o dióxido de carbono é libertado para a atmosfera contribuindo para a acumulação de gases de efeito estufa na atmosfera. Adicionalmente, os cientistas descobriram que a redução da capa florestal tem afectado os padrões climáticos locais. Nas áreas desflorestadas existe a tendência para haver menos chuvas e os cientistas temem que o contínuo abate da floresta pode transformar grande parte da região numa savana. Um recente estudo [de 2005] alertou que a prolongada seca na Amazónia pode levar a uma espiral de mortalidade [da biodiversidade] na maior floresta tropical do mundo» (Rhett A. Butler, 2005). [8]
Estes problemas emergem do facto de o governo brasileiro, os fazendeiros do agronegócio e as grandes multinacionais do sector agrícola desejarem tornar este país num gigante da exportação agrícola, facto que é claramente agravado pela corrida aos biocombustíveis. Assim se pode esperar que os actuais danos ambientais e sociais, como a desflorestação, o ataque à biodiversidade, erosão dos solos, alterações climáticas, trabalho escravo, exclusão social de camponeses e desemprego rural, se venham a agravar cada vez mais. Algo que certamente se pode qualificar insustentável a médio prazo.
O falso ambientalismo da Europa
Aqui na Europa fala-se muito das declaradas metas da União Europeia para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) através da dinamização das energias renováveis. Esta política põe particular ênfase nos biocombustíveis, havendo já vários países incluindo Portugal (Público, 19-01-2006) [9] que decretaram a obrigatoriedade do cumprimento da meta da UE no consumo de combustível líquido (dos transportes). As metas europeias são neste momento de atingir um consumo de combustível de 5,75% por biocombustíveis para 2010, 8% em 2015 e também pretendem aprovar uma meta de 10% para 2020 (TeleSur, 07-03-2007). [10] A quota de mercado de biocombustíveis para a UE dos 25 está em 1,4%, actualmente. É então pouco provável o cumprimento destas metas.
Num interessante artigo, a especialista em genética e biologia Mae-Wan Ho explica-nos que o essencial da produção dos biocombustíveis que serão consumidos na Europa virá de importações do Terceiro Mundo, algo que não surpreende.
«Um relatório publicado em 2002 pelo grupo CONCAWE – a associação europeia das companhias petrolíferas para o ambiente, saúde e segurança na refinação e na distribuição – avaliou que, se os 5,6 milhões de hectares de reserva na UE dos 15 fossem todos cultivados intensivamente com plantas energéticas, pouparíamos apenas 1,3 a 1,5 por cento das emissões de transportes rodoviários, ou seja, cerca de 0,3 por cento do total de emissões desses 15 países. Estas e outras estimativas igualmente pessimistas estão a alimentar o crescimento das indústrias de biocombustíveis nos países do Terceiro Mundo, onde, dizem-nos agora, há muito solo “livre” para o cultivo da bioenergia. O sol brilha mais durante todo o ano, portanto as colheitas crescem mais depressa. Rendem mais e a mão-de-obra é mais barata» (Mae-Wan Ho, 2007). [11]
Eu penso que se torna claro depois de tudo que já referi sobre a desflorestação, a exclusão social no campo que leva ao conflito social (produto da mecanização da produção e concentração da terra), assim como outros efeitos nocivos da própria agricultura industrial, como a erosão dos solos, a poluição dos cursos de água com fertilizante e a contaminação dos organismos geneticamente modificados (OGMs), que estas metas da União Europeia a serem cumpridas vão contribuir para um agravamento potencialmente agudo destes problemas ambientais e sociais no Terceiro Mundo, sendo ainda acompanhados com uma temível crise do preço dos alimentos a nível mundial. Então no que diz respeito aos biocombustíveis, trata-se mais de uma exportação de emissões GEE do que uma efectiva redução.
A gula insaciável dos Estados Unidos
Este último aspecto da crise alimentar, ou como lhe chamam alguns peak food (pico alimentar), é particularmente grave. Tendo em conta que a produção mundial de cereais diminuiu em seis dos últimos sete anos, colocando as reservas ao mais baixo nível de há mais de trinta anos (Mae-Wan Ho, 2007) [11] [11], a perspectiva para o futuro da pressão adicional dos biocombustíveis no preço dos alimentos é de acrescentar crise à crise, quando o mundo luta por cumprir as modestas metas do milénio de combate à fome e à pobreza da ONU.
Todos os chamados países ocidentais, mais a China e o Japão, são responsáveis por esta tragédia humana. E é a própria competição entre estes países poderosos que provoca o chamado efeito “corrida ao ouro verde”, que certamente fará esquecer em muitos casos as nobres tentativas de estabelecer critérios de sustentabilidade para os biocombustíveis. Aliás como aponta a professora Mae-Wan Ho, a maior parte dos estudos actuais que estabelecem critérios de sustentabilidade para os biocombustíveis têm lacunas importantes:
«Actualmente, a maior parte dos estudos energéticos que apresentam um equilíbrio de energia positivo inclui o conteúdo da energia dos subprodutos, tais como o resíduo de sêmea que sobra depois de ser extraído o óleo, e que pode ser utilizado para alimentação dos animais (embora, regra geral, nunca seja utilizado como tal), mas esquece-se de incluir os investimentos em infra-estruturas, tais como os custos em energia e em carbono das instalações de refinaria, e as estradas e armazéns necessários para transporte e distribuição e, evidentemente, os custos de exportação para outro país. Nenhum desses estudos inclui os impactos ambientais. No único caso analisado por investigadores no Flemish Institute for Technological Research, patrocinado pelo Gabinete Belga de Assuntos Científicos, Técnicos e Culturais e da Comissão Europeia, chegou-se à conclusão que “o biodiesel provoca mais problemas de saúde e ambientais porque cria uma poluição mais pulverizada, liberta mais poluentes que promovem a formação de ozono, geram mais desperdício e provocam maior eutroficação”» (Mae-Wan Ho, 2007). [11]
Mas há um país que age de forma particularmente irresponsável em relação à crise alimentar que os biocombustíveis provocam. Esse país é o guloso gigante norte-americano cujos líderes políticos arrogam-se no direito de consumir 1/4 da energia mundial com 5% da população, o american way of life.
Para compreender a dimensão da gula de biocombustíveis dos Estados Unidos, recordo o que diz um artigo da Bloomberg de 9 de Fevereiro de 2007, actualmente os Estados Unidos já consomem em 2,8 do seu combustível líquido para veículos, o etanol, para isto reservam 20% da colheita de milho interna para a produção de etanol (estatísticas do ano de 2006). Então se tivermos em conta o objectivo recentemente declarado em visita ao Brasil do presidente Bush de sextuplicar o consumo do etanol nos EUA, concluímos que seria preciso desviar 120% da colheita anual de milho dos Estados Unidos. Ora convém também lembrar que a colheita de milho dos EUA representa 40% do provimento mundial de milho. Eu penso que aí ficamos com um ideia da magnitude da crise alimentar que pode estar a vir. Dito isto, clarifico que eu não acredito que os Estado Unidos vão embarcar na loucura de desviar toda a produção de milho (+20% importado) para o etanol, mas não é preciso tanto para ter uma crise alimentar aguda, tal como o petróleo não precisará de ser esgotado para que ocorra uma grande crise. Tal como avisam os especialistas da ASPO do pico do petróleo basta que a produção chegue a um pico ou um ponto médio, para que a crise de espiral de preços seja severa. O mesmo se passa para o milho dos EUA, basta que a previsão de alguns analistas de que em apenas 2 anos (após a construção das destilarias previstas), 50% do milho dos EUA seja desviado para o etanol para que tenhamos uma crise alimentar gravíssima (isso seria ficar sem 20% do milho mundial). Os riscos desta ambição também afectarão os Estados Unidos porque a sua Indústria Pecuária corre sérios riscos de ruína, com o aumento do preço das rações de gado (à base de milho).
125,6 milhões de barris/ano – consumo actual de etanol nos EUA (GWB)
829,1 milhões de barris/ano – consumo projectado para 2017 nos EUA (GWB)
O primeiro aviso para esta terrível irresponsabilidade social da parte dos EUA já foi visto no México. Da noite para o dia, em meados de Janeiro de 2007 os preços da tortilha subiram brutalmente. Entre Janeiro/2006 e Janeiro/2007 a cotação do milho subiu 60,8 por cento, impossibilitando a milhões de mexicanos o acesso ao seu alimento básico. No caso da tortilha, foi uma subida de cerca de 70% no quilo da mesma nos 6 meses precedentes até Janeiro de 2007 (Vários, 2007). [12] Tudo isso provocou manifestações massivas de protesto popular na capital mexicana. Quase metade da população mexicana é pobre e muito vulnerável à subida dos preços dos bens de primeira necessidade. Esta primeira crise alimentar no México, que chegou aos serviços noticiosos do mundo, deverá ser um prenúncio de crises ainda piores e do avolumar da tensão social. Tudo devido à irresponsabilidade social dos Estados Unidos que apesar de terem tratados comerciais com o México em que se comprometem a fornecer milho aos mexicanos, pouco se importam se eles conseguem ou não pagar esse milho. Ora se os Estados Unidos detêm cerca de 70% das exportações mundiais de milho (Vários, 2007) [12], podemos também concluir que as crises alimentares vão alastrar bem mais além do México.
Agricultura Industrial versus Agricultura Orgânica
O modelo da Agricultura Industrial, que está directamente ligado à indústria dos cultivos energéticos, vem sendo implementado a nível mundial desde a famosa “Revolução Verde” em meados do Século XX, que mais não é do que a industrialização da actividade agrícola. Este modelo de agricultura que agora ganha um novo impulso com os biocombustíveis é o responsável por uma parte considerável da poluição e destruição ambiental que os ecologistas se empenham em combater. Durante grande parte do Século XX até agora prosseguiu a desflorestação, a poluição de cursos de água, eutroficação, a erosão dos solos, a contaminação de cultivos pelos OGMs, contaminação por pesticidas, perda de diversidade biológica com o monocultivo, hiper consumo de água, desenvolvimento de doenças perigosas na produção pecuária, enfim uma grande quantidade problemas ecológicos e de saúde pública que são questões chave para a comunidade ambientalista e não só.
Vou falar apenas de dois problemas que reflectem bem os efeitos desastrosos para o ambiente da Agricultura Industrial nos Estados Unidos. País que continua a ser um líder neste sector, talvez o maior (embora à custa de enormes subsídios e proteccionismo). É o caso da poluição dos cursos de água, que devido à enorme utilização de fertilizantes, tem um impacto colossal no rio Mississipi escoando grande parte desses resíduos para o Golfo do México. Aí (no Golfo do México) se forma o que os ecologistas chamam uma Dead Zone (Área Morta), uma extensa área, é a maior Dead Zone do mundo, em que devido à alta concentração de fertilizantes industriais tóxicos e falta de oxigénio resultante são mortos peixes e animais marinhos de todas as espécies (só ficam algumas algas que sobrevivem nesse ambiente). Outra grande ameaça não só ao ambiente mas ao próprio ser humano é o enorme gasto de água doce que a Agricultura Industrial implica, em vários casos nos Estados Unidos a drenagem da água dos aquíferos subterrâneos está a esgotar rapidamente essas reservas devido a uma utilização da água acima da sua taxa de reposição.
«Actualmente a mais notória Dead Zone é a região de 20.000 quilómetros quadrados no Golfo do México, na zona onde o Rio Mississipi deposita o escoamento da sua vasta bacia de drenagem, o que inclui o coração do agronegócio norte-americano, o Midwest, afectando importantes águas de pesca do camarão». (Wikipédia) [13]
A alternativa a este modelo existe e chama-se Agricultura Orgânica, que também se pode chamar permacultura ou agricultura biológica. Cuba é o país que mais notoriamente adoptou a Agricultura Orgânica e provavelmente o único cuja Agricultura é predominantemente Orgânica. Embora esta prática se desenvolva em menor escala nos países ocidentais, só em Cuba e creio que no estado de Kerala, no sul da Índia, esta prática agrícola é generalizada.
As vantagens do modelo Orgânico da Agricultura são muitas, todas na direcção da poupança e conservação de energia, sustentabilidade e equilíbrio ambiental e soberania e auto-suficiência alimentar. A prova dessas vantagens tem o seu exemplo em Cuba que a partir dos acontecimentos que levam ao colapso da União Soviética em1989 assiste ao cancelamento abrupto de nada mais que 85% do comércio externo, 75% das suas importações e 53% das suas importações de petróleo (Hugh Warwick, 1999) [14]. Como Cuba já estava bloqueada pelos Estados Unidos (que então foi agravado com emendas draconianas) e isolada economicamente pelos aliados de Washington na América Latina cúmplices desse bloqueio, o cancelamento abrupto do comércio com a União Soviética proporcionou um cataclismo económico que nenhum país aparentemente poderia sobreviver. Os funcionários da Casa Branca esfregavam as mãos prevendo a queda do regime cubano, estavam a esfomear um país até à morte. Este período ficou conhecido pelas autoridades cubanas como o “período especial” e durou toda a década de 90.
E de facto, os Estados Unidos conseguiram esfomear os cubanos. Cerca de 57% do consumo calórico de Cuba era importado e estimava-se que a população dependia de outros países para o consumo de mais de 80% das proteínas e gordura. Nestes anos do chamado “período especial” os cubanos perderam em média cerca de 30% do seu consumo calórico e de proteínas comparando com os anos 80. O sistema agrícola cubano à base de grandes fazendas estatais e do modelo agro-industrial entrou numa crise profunda enquanto as importações de pesticidas e fertilizantes caíram 80% (Hugh Warwick, 1999). [14]
Foi neste cenário negro (uma espécie de precipício do petróleo) que Cuba decidiu empreender uma revolução orgânica na sua agricultura. Não para se reclamarem campeões da ecologia mas para recuperar o nível de vida perdido, para evitar o colapso social e político. As grandes fazendas estatais foram transformadas em pequenas cooperativas de camponeses reorganizando a produção com tracção animal em vez de máquinas, controlo de pragas biológico em vez de pesticidas químicos, fertilizantes naturais em vez de fertilizantes industriais. Para isso construiu-se uma rede de centros de investigação biológica pelo país para aperfeiçoar o controlo de pregas e fertilizantes biológicos.
«A agricultura cubana agora consiste numa diversificada combinação de fazendas orgânicas, permacultura, jardins urbanos, energia animal, fertilizantes biológicos e controle biológico de pragas. A nível nacional, é provável que Cuba tenha agora a agricultura mais ecológica e socialmente sensível do mundo. Em 1999, o parlamento sueco distinguiu Cuba com o prémio Right Livelihood, conhecido como “prémio Nobel alternativo”, por estes avanços» (Dale Jiajun Wen, 2006). [15]
Um importante componente desta revolução orgânica foi a dinamização da agricultura urbana. A agricultura urbana reduziu as distâncias da distribuição de alimentos e grandes percentagens do consumo de alimentar urbano vêm hoje das próprias cidades. Estima-se que 50% dos vegetais de Havana vêm de dentro da cidade, enquanto em outras cidades e vilas, os jardins urbanos produzem de 80% a mais de 100% das suas necessidades (Megan Quinn, 2006). [16]
«O nosso país, bloqueado durante mais de quatro décadas, ao ruir o campo socialista e ao ver-se obrigado a enfrentar uma situação sumamente difícil, pôde, por exemplo, produzir, em espaços disponíveis dentro das cidades, mais de três milhões de toneladas de vegetais [hortaliças] por ano em cultivos organopónicos, com o emprego de palhas e dejectos agrícolas, utilizando o sistema de rega gota a gota ou microjacto, com um consumo mínimo de água, dando além disso emprego a trezentos mil cidadãos e sem emitir um grama de dióxido de carbono para a atmosfera» (Fidel Castro, 2006). [17]
Desde que Cuba passou de uma produção agrícola intensiva em petroquímicos para o cultivo e jardinagem orgânica, Cuba passou a usar 21 vezes menos pesticidas industriais que no “período especial”. Eles conseguiram isto com a produção em larga escala de pesticidas e fertilizantes biológicos, exportando até uma parte destes insumos para outros países da América Latina.
«A mais importante conclusão é que, lá para finais de 2000, o provimento alimentar de Cuba atingiu as 2.600 calorias e mais de 68 gramas de proteínas per capita. A Organização de Agricultura e Alimentos da ONU considera que a dieta adequada é um consumo de 2.400 calorias e 72 gramas de proteínas. Apesar de permanecerem problemas em outras áreas, a crise aguda de escassez de comida está essencialmente acabada» (Sinan Koont, 2004). [18]
Houve também problemas como é evidente, como a onda de fome devido às grandes transformações do “período especial”, mas a alimentação cubana acabou por se tornar bastante saudável e vegetariana, porque a produção de carne era um luxo muito dispendioso. Se a revolução orgânica conseguiu fazer isto num país pobre submetido a duríssimos bloqueios económicos podemos imaginar o que pode fazer noutros países com mais meios e possibilidades.
Notas:
[1] Robert Rapier (2006) – Vinod Khosla Debunked: Ethanol is NOT the Answer. In http://www.theoildrum.com/story/2006/7/24/202222/351
[2] Wikipédia – Cana-de-açúcar. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Cana-de-a%C3%A7%C3%BAcar
[3] Vermelho (2007) – Protestos contra Bush ocorrerão em toda América Latina. In http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=14463
[3] Wikipédia (2006) – Palm Oil. In http://en.wikipedia.org/wiki/Palm_oil“>href=”http://en.wikipedia.org/wiki/Palm_oil”>http://en.wikipedia.org/wiki/Palm_oil
[4] Wikipédia (2006) – Palm Oil. In http://en.wikipedia.org/wiki/Palm_oil
[5] The Food and Agriculture Organization of the United Nations’s Global Forest Resources Assessment (2005) and the State of the World’s Forests (2005, 2003, 2001).
http://rainforests.mongabay.com/deforestation/2000/Indonesia.htm
http://rainforests.mongabay.com/deforestation/2000/Malaysia.htm
http://rainforests.mongabay.com/deforestation/2000/Brazil.htm
http://rainforests.mongabay.com/deforestation/
[6] World Wildlife Fund (2005) – China funds massive palm oil plantation in rainforest of Borneo. In http://news.mongabay.com/2005/0812-wwf.html
[7] Glenn Barry (2005) – Biofuels threaten rainforests as important European Commission decision lies ahead. In http://news.mongabay.com/2005/1001-forests_org.html
[8] Rhett A. Butler (2005) – Amazon deforestation slows in Brazil for 2005. In http://news.mongabay.com/2005/1205-amazon.html
Ver também: LA Times (2005) – Brazil’s growth as agricultural giant has cost. In http://news.mongabay.com/2005/0822-la_times_amazon.html
[9] Público (19-01-2006) – Conselho de Ministros aprova medidas para promoção de biocombustíveis. In http://ecosfera.publico.pt/noticias2005/noticia4853.asp
[10] TeleSur (07-03-2007) – UE iniciará debates para luchar contra el calentamiento global. In http://www.telesurtv.net/secciones/noticias/nota/index.php?ckl=7979
[11] Mae-Wan Ho (2006) – Biocombustíveis: Biodevastação, fome & falsos créditos de carbono. In http://resistir.info/ambiente/biodevastacao_p.html
[12] Informações várias (2007), Resistir, G1, Jornal da Globo, BBC Brasil.
http://resistir.info/
http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL1191-5599,00.html
http://jg.globo.com/JGlobo/0,19125,VTJ0-2742-20070306-269745,00.html
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/02/printable/070222_etanolbg.shtml
[13] Wikipédia – Dead Zone. In http://en.wikipedia.org/wiki/Dead_zone_(ecology)
[13] NOAA (2003) – Hypoxia in the Gulf of Mexico. In http://www.nos.noaa.gov/products/pubs_hypox.html
[14] Hugh Warwick (1999) – Cuba’s organic revolution. In http://www.twnside.org.sg/title/twr118h.htm
[15] Dale Jiajun Wen (2006) – Cómo adaptarse al pico de producción de petróleo. In http://www.rebelion.org/noticia.php?id=42970
[16] Megan Quinn (2006) – The Power of the Community: How Cuba Survived Peak Oil. In http://www.globalpublicmedia.com/articles/657
[17] Fidel Castro (2006), entrevistado por Ingácio Ramonet no Livro, “Fidel Castro: Biografia a duas vozes”, edição Campo das Letras.
[18] Sinan Koont (2004) – Food Security in Cuba. In
http://www.globalexchange.org/countries/americas/cuba/sustainable/susAgriculture/1465.html
* Especialista em energia e membro da Associação para Estudo do Pico do Petróleo (ASPO)
Fonte: ODiario.info
Ver também: “Crescimento e Sustentabilidade” de Rui Namorado Rosa e “De doce a combustível: a milenar história da Cana-de-Açúcar” de Luís de Sousa